A infernal vida em que todos precisam ser “influencers”
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Não é sempre, mas uma gota sozinha pode transbordar um balde. Abre aspas para a BBC Brasil:
Corre em livros de História a seguinte anedota sobre o então imperador Dom Pedro II: ao chegar ao baile que veio a ser o último do seu reinado e da monarquia, no dia 9 de novembro de 1889, tropeçou ao entrar no salão. Ao se reerguer, disse, brincando: “A monarquia tropeça, mas não cai.”
Se verdadeira, a piada carregava uma ironia que Dom Pedro II só conheceria mais tarde. A festa derrubou, de fato, a monarquia seis dias depois, em 15 de novembro de 1889.
Os meses anteriores ao suposto tropicão de Dom Pedro II foram terríveis para o país e, consequentemente, para a monarquia. Primeiro que ninguém tinha certeza de que Dom Pedro II estava vivo o suficiente para governar: a diabete estava tão avançada que o então rei chegou a receber a extrema-unção. Segundo que havia pressões cada vez maiores de empresários e militares para participarem do governo. Terceiro que a pobreza generalizada avançava enquanto a população da então capital do Império crescia. Abre aspas para o artigo “Entre ‘doidos’ e ‘bestializados‘: O baile da Ilha Fiscal”, da professora do Departamento de História da FFLCH-USP, Mary Del Priore, publicado Revista da USP de junho/agosto de 2003:
A cidade era conhecida por sua insalubridade e sujeira. Tinha entranhas feitas de ruas estreitas e sinuosas e prédios colados e superpovoados. Surtos epidêmicos fustigavam a população indefesa. As questões de higiene e salubridade eram ignoradas pelas autoridades, assim como os problemas ligados a transportes, abastecimento e esgotos.
Sem surpresa, um movimento republicano ganhava força quanto mais a Monarquia se enfraquecia. Descolada da realidade, a Monarquia achava que era questão de tempo para que entrássemos no Terceiro Reinado, com a então princesa Isabel como rainha. Era um devaneio, mas foi sob esse devaneio que Dom Pedro II viu a visita oficial de uma comitiva chilena como a oportunidade ideal para mostrar ao Chile — e ao resto do mundo — que seu governo ia muito bem, obrigado. A monarquia brasileira, então organizou, o que ficou conhecido como “festas chilenas”: “Durante dois meses, as autoridades brasileiras recepcionaram oficiais do navio chileno Almirante Cochrane, que visitavam o país em viagem diplomática. Foram dias e dias de jantares, passeios turísticos às montanhas, corridas de cavalo e regatas — ‘um nunca acabar de festas’, como descreveu um cronista — que mobilizaram a elite carioca”, segundo descrição da BBC.
A cereja no bolo das “festas chilenas” seria o evento que ficou conhecido como “Baile da Ilha Fiscal”. A Ilha Fiscal é uma ilhota minúscula colada à Ilha das Cobras na região portuária do Rio de Janeiro. Se você for ao Museu do Amanhã, não é difícil vê-la. Ao atravessar a Ponte Rio–Niterói ou pousar no aeroporto Santos Dumont, mesma coisa. É um pedacinho de terra onde cabe praticamente um palácio em estilo manuelino.
Foi para lá, em 9 de novembro, que Dom Pedro II levou cerca de 3 mil convidados para um desbunde de comida e bebida — no livro 1889, o jornalista Laurentino Gomes calcula que mais de mil penetras conseguiram entrar na festa. Para alimentar essa gentarada, tudo do bom e melhor: “Entre copeiros, trinchadores, cozinheiros e ajudantes foram mobilizados 300 funcionários. Registram-se 12 mil garrafas de vinho, champanhe e outras bebidas; 12 mil sorvetes; a mesma quantidade de taças de ponche, 500 pratos de doces variados. Serviram-se ainda 18 pavões, 80 perus, 300 galinhas, 350 frangos, 30 fiambres, 10 mil sandwiches, 18 mil frituras, mil peças de caça, 50 peixes, 100 línguas, 50 mayoneses e 25 cabeças de porco recheadas”, segundo o livro Festas Chilenas: Sociabilidade e política no Rio de Janeiro no ocaso do Império, do professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Jurandir Malerba.
Luxo aos poucos enquanto o país nadava na merda. A poucos quilômetros da Ilha Fiscal fica o Museu Histórico Nacional, no centro do Rio de Janeiro. Lá está um quadro pintado por Aurélio de Figueiredo com o nome original de A ilusão do Terceiro Reinado. Dois anos depois de pintado, o quadro foi apresentado ao público com um novo nome: O advento da República. Essa informação está no artigo “O último baile e seus personagens”, escrito pela pesquisadora do Museu Histórico Nacional, Maria Isabel Ribeiro Lenzi. O quadro registra o momento em que a família real está se retirando do baile, com o Rio de Janeiro ao fundo. Não era metáfora: o contraste entre o baile nababesco e a miséria da sociedade convenceu quem faltava convencer e, seis dias depois, contam os registros históricos que um moribundo Marechal Deodoro da Fonseca montou em seu cavalo e foi proclamar a República. Ao encerrar o Império, Deodoro também garantiu que o Baile da Ilha Fiscal seria cimentado eternamente como exemplo de gota que transborda o balde — uma gota generosa de espumante francês, no caso.
Antes de avançarmos no roteiro, deixa eu só grifar um dos fatores que ajudaram na queda do Império. Entre as perdas de apoio de Dom Pedro II estava a dos grandes fazendeiros no Brasil, insatisfeitos depois que o Império alforriou os escravos em 1888 com a Lei Áurea e sem indenizá-los. Não existia a menor chance de o Brasil dar certo. Enfim.
Já faz algum tempo que, ao pensar no papel que os influenciadores têm na sociedade na última década, o Baile da Ilha Fiscal aparece sorrateiro como pano de fundo. Porque o jogo da influência virou também um jogo de ostentação — ser influente é exibir-se, incluindo os ganhos do seu trabalho de influenciador. Num país em constante crise econômica pelo menos desde 2010 e no qual um grande naco de trabalhadores é informal e/ou precarizado, parecia uma receita para o balde entornar. Mas minha lógica tinha uma falha fundamental: no Baile da Ilha Fiscal, ninguém se via na ilha. Existiam os penetras, como contado pelo Laurentino Gomes, mas parecia algo circunstancial — o sujeito só foi comer o lombo de porco e tomar o espumante, ele não entrou na Monarquia.
O sujeito que vê um youtuber, tiktoker ou instagramer exibindo o novo carrão, a nova mansão na Flórida1 ou a viagem para Bora-Bora, vê tudo isso como realizações ao seu alcance. O jogo de influência no qual estamos mergulhados é também aspiracional, o que revela outro traço perverso da metástase do digital na nossa vida, já visto no mercado de entregas ou corridas mediadas por apps: se você ainda não atingiu o sucesso, é porque não quis, ou não se dedicou o suficiente. Não custa lembrar que tal lógica é uma falácia. A vida real é bem mais complicada que isso.
Nessa escala para chegar ao topo da pirâmide onde estão os ótimos benefícios de ser um influenciador de massa, a sociedade mergulha numa espécie de espetáculo em que o que vale é a ficção para as telas. A vida vira um espetáculo a ser performado e consumido no celular. Todo mundo vira produtor de conteúdo, a realidade vira só uma forma de viabilizar as esquetes, os episódios; a prioridade da profissão vira se projetar, antes mesmo da função primordial que você deve desempenhar (o arquiteto planeja, o médico trata, o programador codifica, o escritor escreve…). Nessa vida como espetáculo, quanto mais separados real e a ficção, maior o risco de uma fratura.
No sexto episódio da sexta temporada do Tecnocracia, nós vamos pensar alto sobre os influenciadores. Sobre o que é influência, de onde ela vem, se eles realmente influenciam alguém. Sobre os efeitos que o alpinismo na pirâmide dos influenciadores faz não apenas na vida de quem tenta escalar, mas também na das pessoas ao redor e, mais importante, na sociedade como um todo. Sobre como as redes sociais despontaram com a promessa de que ter mais conexões é melhor, mas, 15 anos depois, parece claro que o contrário é verdade.
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Influenciar não é um conceito novo — abre aspas para o jornal New York Times:
A palavra “influência” vem do latim “influere”, que significa “fluir em”, e surgiu no século XIV. De acordo com o Oxford English Dictionary, seu primeiro significado foi astrológico: imaginava-se que corpos celestiais tinham “influência”, um fluído etéreo que fluía dos céus para afetar o destino dos humanos.
Das estrelas para os humanos, passaram-se 200 anos até o século XVI, quando se percebeu que “um grupo religioso ou político poderia, por exemplo, influenciar nos sistemas de crença”. A acepção segue até hoje. Influenciar é convencer ou afetar um grupo específico, principalmente para tomar ações que beneficiam quem influencia. Na literatura, os casos de influência com fins nefastos são mais populares que os positivos. Peguemos o exemplo de um escritor desconhecido chamado William Shakespeare. Abre aspas para a New Yorker:
O termo “influência” aparece em um quarto das suas peças, nas quais a condição de ser influenciado é raramente feliz ou dignificado. Quase sem exceção, Shakespeare dá à influência um um tom astrológico sombrio.
Quer outro exemplo? O retrato de Dorian Gray, escrito em 1890 por Oscar Wilde, página 21 da edição recente da Penguin Companhia:
— Não existe nada semelhante a uma boa influência, senhor Gray. Toda influência é imoral — imoral do ponto de vista científico.
— Por quê?
— Porque influenciar alguém é lhe entregar a própria alma. A pessoa não pensa seus pensamentos naturais, nem arde com suas paixões naturais. Suas virtudes não são as verdadeiras. Seus pecados, se é que existem pecados, são de empréstimo. Ela se torna o eco da música de outro, desempenha um papel que não foi escrito para ela. O objetivo da vida é o autodesenvolvimento. Realizarmos a nossa natureza com perfeição — é para isso que cada um de nós está aqui. Hoje em dia as pessoas têm medo de si mesmas. Esqueceram-se da mais elevada das obrigações, a obrigação que cada um deve a si próprio.
Não caiamos no pessimismo exagerado do romântico Wilde. Existe a boa influência A gente nasce e morre sozinho, mas no meio deste sanduíche existem incontáveis episódios para todos nós em que alguém nos empurra para algo bom, alguém vê um potencial em nós que não enxergamos, alguém sugere um caminho que a gente nunca tinha cogitado ou resistia em tomar por puro cagaço. Enfim, voltemos ao argumento.
Este modelo histórico de influência era feito, quase sempre, nas sombras. As cortes europeias do século XVII tinham intermediários e conselheiros influentes cujo principal papel era navegar pela sociedade, entendendo o cenário e mexendo pauzinhos suficientes para colocar aqueles que os financiavam em uma posição melhor. Se você é mais atento ou atenta, já entendeu que essa é uma atividade que continua até hoje, mas sob o nome de “lobby”. O lobby não é nada mais, nada menos do que um “influência as a service” — você torra uma grana enorme para ter um representante, normalmente com ótimo trânsito nas altas esferas do poder, que vai levar o seu interesse a quem tem poder de decisão. Nos EUA, o lobby é oficializado e, por isso, regulamentado. No Brasil, embora seja uma atividade reconhecida, ainda não é regulada. Essa enorme área cinzenta a torna ainda mais prejudicial. Já falamos do tema no Tecnocracia #9.
Durante séculos, foi influência silenciosa. Aí chegou o século XX e a influência se transformou com a chegada da mídia de massa e um dos seus filhotes, a publicidade. Principalmente a partir da Segunda Guerra Mundial, o conceito de influenciador mudou conforme o mercado publicitário nasceu e explodiu — a gente falou sobre isso no Tecnocracia #11.
Na Nova York de 1833, um sujeito criou um jornal que não se sustentava pelas vendas de edições, mas pelos anúncios que veiculava. Nascia a publicidade. Quase 200 anos depois, este segue a ser o principal modelo de negócios para mídia. A publicidade também ajudou na formatação da influência ao personificar uma marca em figuras, humanas ou não — o urso da Coca-Cola, o cowboy de Marlboro e o careca do Bombril são exemplos pioneiros de influenciadores ficcionais. Já os reais eram profissionais de sucesso em profissões de grande alcance — estrelas de cinema, atletas, músicos… O número sempre foi grande, porém limitado.
Chegamos finalmente à grande diferença da internet: os dois pólos — quem anuncia e quem quer anunciar — se tornaram praticamente infinitos com a mediação das plataformas. Aí entram três palavrinhas que arrepiam minha espinha: criador de conteúdo. Você precisa ter um conteúdo que chame a atenção suficiente para atrair interesse de anunciantes, preferencialmente anunciantes bons — não aqueles anúncios de pirâmide ou tigrinho que precisa começar com “olha, isso não é um golpe”. Nem todo criador de conteúdo é influente, mas todo influente é um criador de conteúdo — ou agregador ou simplesmente surrupiador. E a partir do que o ser humano médio vai criar conteúdo? A maioria vai usar o que já tem à disposição — seu próprio trabalho, suas relações próximas, sua própria rotina, seus próprios filhos.
Aqui chegamos ao ponto principal do episódio: a tal “criação de conteúdo” se introjetou profundamente na sociedade. Hoje todo mundo é um criador de conteúdo com o objetivo de influenciar e ganhar a vida com isso. De entrar no Baile da Ilha Fiscal.
A questão é que a escalada é bastante íngreme e desigual. Abre aspas para artigo da cofundadora e general partner do fundo Variante, Li Jin, no Substack:
O cenário atual de criadores se assemelha mais a uma economia na qual a riqueza está concentrada no topo. No Patreon, apenas 2% dos criadores ganharam o salário mínimo norte-americano de US$ 1.160 por mês em 2017. No Spotify, os artistas precisam de 3,5 milhões de streams por ano para atingir os ganhos anuais de um trabalhador de tempo integral com salário mínimo anual de US$ 15.080, um fato que leva a maioria dos músicos a complementar seus ganhos com turnês e mercadorias. Em contraste, nos Estados Unidos em 2016, 52% dos adultos viviam em famílias de renda média, com rendas variando de US$ 48.500 a US$ 145.500 anuais.
Em outras palavras, não existe classe média de criadores. Ou você recebe cheques estupidamente altos ou não consegue se sustentar.
Criar conteúdo, para a maioria, é uma espécie de trabalho extra — ou “side hustle”, como diria Lu. Há exceções: é fascinante ver como o efeito cauda longa permite que criadores de conteúdos de nichos bastante exóticos conseguem ou viabilizar uma vida financeiramente estável ou complementar a renda. Ainda assim, sempre longe do nababesco. Mesmo em nichos enormes existem subnichos — reitero minha vontade, provavelmente jamais saciada, de analisar dados do OnlyFans para entender quem são os criadores e criadoras bem longe do topo, onde estão, por exemplo, homens com cara de sujeito comum do canal The Cut que ganham poucas centenas de dólares todo mês com masturbações ou explicações de conceitos da mecânica pelado2. Segundo um deles, dinheiro para gasolina.
Criar conteúdo antes, viver depois
A subida íngreme3 desencoraja a multidão? Tudo indica que não. O fator aspiracional parece ter um peso enorme e quem já chegou lá começou a funcionar como uma espécie de validação de quem está escalando. Você vê esta espécie de “vestibular de influenciadores” em eventos como a SuperCopa Desimpedidos, do canal homônimo, a Casa da Barra, de Carlinhos Maia, e até de quem não é exatamente um sinônimo de sucesso, como o reality show A Bolha, do ex-BBB Victor Hugo. Até agora, nenhum deles pariu alguém com mais projeção do que quem dá seu nome ao vestibular. Tal qual a rêmora que se liga ao tubarão, os menores ganham projeção enquanto o maior ganha conteúdo. A simbiose faz a roda girar.
Virar “creator” significa transformar gente em marca. Ao transformar a própria vida, os próprios filhos, o próprio hobby em matéria-prima de conteúdo, abre-se mão de uma privacidade necessária para viver são: poder “desperdiçar” tempo não produtivo. A gente falou disso no Tecnocracia #72: hobby é onde você passa tempo sem pressão. Se você transforma uma atividade prazerosa em trabalho — e ser ou tentar ser creator é trabalho —, introduz dinâmicas de cobrança que sufocam o prazer.
Hobby é tempo não produtivo e, por isso mesmo, é tempo bem aproveitado, não desperdiçado. É a mesma coisa com filhos — nas preocupações de criar um ser humano, intromete-se essa dinâmica de “como eu vou mostrá-lo(a) ao mundo?” É inevitável que criação e exposição se choquem. Inevitável. Eu fico muito curioso para ver a médio prazo quais serão as consequências dessa onda arrepiante de transformar crianças, algumas ainda no conforto do útero, em influenciadores para arrancar uns cascalhos no fim do mês. É a “larissamanoelização” das relações familiares, mas sem qualquer garantia de que vá render dinheiro, quiçá muito dinheiro.
E tem o usar o próprio trabalho para virar creator, uma quase obrigação praticamente generalizada hoje. Esse mal-estar sempre aparecia quando eu via algum profissional fazendo esquete barato com pacientes/clientes para ganhar projeção nas redes sociais — um dia vi uma fisioterapeuta fazendo aquela galhofa tiktokística de um paciente torto na mesa dela.
Daí a Fernanda Torres sintetizou bem na Folha de S.Paulo. Abre aspas:
O leitor pode argumentar que são os ossos do ofício, da popularidade do ator, mas o que dizer de um médico obrigado a alimentar o Tamagotchi midiático para sobreviver? A Doctor Filmes, por exemplo, grava cirurgias em tempo real e tem como slogan: “Crie autoridade através do seu Instagram”, prometendo ao clínico ser “cirurgicamente eficiente em suas mídias sociais”. No caso de um cirurgião plástico, uma dermatologista, eu até perdoaria a autopromoção, mas um proctologista, um cardiologista, um cirurgião de pulmão?! Imagine você de touca, alucinado de propofol, avental aberto para trás, dividido ao meio por um bisturi, com uma equipe de filmagem presente, para eternizar a sua frágil condição humana nos “reels” do doutor marketing que te opera. Isso fora o risco aumentado de infecção de uma sala de cirurgia superpovoada.
Nem de graça. Meu limite eram os meus filhos, mas incluo os meus órgãos vitais. Não sou tão retrógrada a ponto de achar que tudo é condenável na comunicação virtual. O doutor Drauzio é referência de boa informação médica. Os bots podem disparar mensagens tanto para fortalecer a cobertura vacinal do país, quanto para defender a cura da Covid pela ivermectina. Preocupa, no entanto, a obrigação do profissional, não importa a área, de virar garoto-propaganda de si mesmo.
Vale sempre repetir: quem atrai a maior massa não é necessariamente o melhor profissional. Como tudo na vida, a coisa é cheia de meandros: há os profissionais sérios que mantêm o foco na atividade primária e forjam uma carreira de creator. Mas há o outro lado do pêndulo. Empresas nascem com um produto ou serviço e acoplam a comunicação para ganhar escala. Quando uma pessoa vira uma marca, ela e sua realidade são os próprios produtos, então a comunicação é um pilar fundamental desde o dia zero. O produto é a comunicação — os conduítes estão lá, é preciso preenchê-los com conteúdo. Cria-se uma tentação que o varejo experimenta há décadas: você tem as prateleiras — físicas ou virtuais —, então por que só vender produtos dos outros? Pão de Açúcar tem Qualitá e Taeq, o Walmart cria a Good Value e a Amazon tem a Amazon Basics. Se a multidão já está focada em você, por que não criar alguma coisa para vender? Logan Paul com as bebidas Prime, Virgínia com os cosméticos Wepink e a Kim Kardashian com a Skims não me deixam mentir. Quando não é produto, é serviço — não falta influenciador/a advertido pelo Conselho de Nutrição ou de Educação Física por oferecer consultoria sem registro. Uma dica prática: há um enorme contingente de excelentes profissionais que não sabem baixar o Instagram no celular. Se o seu médico, terapeuta ou pedreiro parece mais preocupado com o que vai produzir de conteúdo do que com o serviço em si, procure por outro.
O perigo de infectar pilares da sua vida — seu trabalho, a relação com seus filhos, com seu esposo(a) — é que a lógica perversa do algoritmo das redes sociais se esparrama do digital para o real. E a gente já cansou de falar no Tecnocracia de como os algoritmos de recomendações de redes sociais destacam o que tem de mais histriônico e desequilibrado. Cada um no seu nicho, mas todos focados em criar conteúdo com o que se tem à mão e ansiosos por agradar um algoritmo opaco, vamos todos tirando os pés da realidade, esgarçando o laço com o real. E dá-lhe autopromoção com tragédias ao fundo — o campeão do BBB posar sorrindo com atingidos pelas enchentes do Rio Grande do Sul, a influenciadora fitness se gravando em uma festinha e gritando “foda-se a vida” no começo da pandemia, o influenciador filmando cadáver em floresta no Japão. A lista com tentativas de explorar a própria marca ignorando a miséria real é enorme e segue crescendo.
Não existe um exemplo pior deste fenômeno da espetacularização que a política. Creators com bases enormes galgaram posições legislativas e executivas pelo mundo todo com um ótimo conhecimento de comunicação, mas nem sempre tão bom no processo político. Os políticos que já estavam lá, tentando se adaptar, aderiram ao que o G1 chamou sabiamente de “bancada da selfie”: deputados, senadores e presidentes que agem pelo aplauso online, pelo corte a ser beneficiado pelo algoritmo.
A troca do diálogo pelo conflito já presenciado em redes sociais passa a se manifestar em comissões, no cara a cara. Ou como definiu o cientista político Antonio Testa ao G1:
Os deputados gravam, filmam, editam e colocam nas redes sociais. Alguns deputados não participam de comissões, mas fazem um discurso de 2 minutos, levantam e vão embora. Mas eles gravam para colocar nas redes sociais. Não tem interação e aquele debate da velha política. Isso acabou. Está muito mais um jogo de usar a imagem deles para atingir um suposto eleitorado.
Na prática, resolve pouco, mas a performance é obrigatória.
Voltemos à New Yorker descrevendo a evolução dos influenciadores:
A qualidade elusiva da influência — a dificuldade que encontramos quando tentamos identificar suas fontes ou medir seus efeitos — é igualmente desestabilizadora. A influência funciona melhor quando é exercida obscuramente, nas sombras e nos bastidores, e isso tem consequências sociais claras para uma sociedade engajada na construção de uma economia de influência digital. Com base nas evidências disponíveis, parece que não podemos construir uma economia de influência sem alimentar uma cultura de ceticismo e paranoia. O medo de ser influenciado afeta nosso senso de realidade e nossa capacidade de confiar em nossos próprios julgamentos sobre o que é verdade. Hackers eleitorais e influenciadores comerciais têm objetivos totalmente diferentes, mas ambos contribuem para o teor irreal e desconfiado de nossos tempos, nos quais uma linguagem de falsificação, engano e inautenticidade se tornou fundamental para como interpretamos o mundo.
Se a prioridade é o espetáculo para seguidores, a nossa vida real acaba virando cenário para essa performance fragmentada, escalafobética e de péssima qualidade. Deixa eu só fazer uma distinção aqui. Um dos homens vivos mais inteligentes do planeta se chama RuPaul Andre Charles, Mama Ru para os mais chegados. Se você acha que eu estou fazendo piada4, leia o livro de memórias The house of hidden meanings, que ele publicou em abril de 2024, ou veja suas entrevistas por aí. Em um certo momento da vida, RuPaul ouviu de uma drag se apresentando que “todos nascemos pelados, o resto é drag”. É verdade: da hora em que a gente sai nem do útero, mas do banho, a gente escolhe a forma como vai se apresentar ao mundo. É bom lembrarmos como há uma dose de ficção, de teatrinho em tudo que todo mundo faz desde sempre. A vida precisa, sim, de um pouco de espetáculo — não dá para viver só com a aridez da vida à la Graciliano Ramos. Mais que sobreviver, é preciso viver e viver passa por uma dose de fascínio, de magia, de ficção. Um pouco de espetáculo.
Para começar a amarrar tudo, abre aspas para a colunista de opinião do New York Times, Michelle Goldberg, em coluna publicada em novembro de 2021:
As plataformas de mídia social há muito se justificam com a ideia de que conectar pessoas tornaria o mundo mais aberto e humano. Na vida offline, afinal, conhecer muitos tipos diferentes de pessoas tende a ampliar a mente, transformando caricaturas em indivíduos complicados. É compreensível que muitos acreditassem que o mesmo seria verdade na internet. Mas acontece que não há nada intrinsecamente bom na conexão, especialmente online. Na internet, a exposição a pessoas diferentes de nós muitas vezes nos faz odiá-las, e esse ódio estrutura cada vez mais nossa política. A corrosão social causada pelo Facebook e outras plataformas não é um efeito colateral de más decisões de gerenciamento e design. Ela está embutida na própria mídia social.
O que a internet moderna tem não é conexão. Ninguém está se sentindo mais conectado aos demais por ver uma sucessão de esquetes de baixa qualidade nos feeds de plataformas sociais. O que a internet moderna tem é distração, um espetáculo infindável de conteúdo sem os benefícios da real conexão. A distração é um produto, um fim em si mesma, numa guerra feroz e sem regras pela nossa atenção. Um dos aspectos formadores deste espetáculo é a cacofonia — todo mundo falando ao mesmo tempo, muito mais bocas do que ouvidos em ação. Eu não te conheço por ver as suas esquetes; eu conheço a sua personagem. Viramos uma multidão de Caubys Peixotos de pior qualidade, o CPF engolido pelo CNPJ, incapazes de tirar a peruca e sair do personagem. Eu digo isso com todo respeito ao Cauby5.
Não que seja impossível ter conexões reais com gente que você conheceu online — eu mesmo tenho amigos que nunca vi ao vivo com quem tenho mais intimidade e que sabe mais a meu respeito do que com quem compartilho sangue. É que essa capacidade de criar laços profundos vai no sentido contrário do espetáculo — é 100% a pessoa. Quanto mais personagem entra, mais difícil fica de se relacionar com a pessoa. Abre aspas de novo para o New York Times:
O valor da distância psíquica pode ser aplicado dentro das comunidades, bem como entre elas. Em 2017, Deb Roy, diretor do MIT Center for Constructive Communication e ex-cientista chefe de mídia do Twitter, realizou reuniões informais em pequenas cidades para falar com as pessoas sobre mídias sociais. Várias vezes, as pessoas lhe disseram que tinham desistido de falar com vizinhos ou outras pessoas na cidade depois de vê-los expressar suas opiniões online. Foi a primeira vez que Roy ouviu diretamente de pessoas para quem a mídia social “está bloqueando conversas que, de outra forma, estariam acontecendo apenas organicamente”.
Por mais paradoxal que pareça, é preciso saber menos a respeito dos outros, principalmente a performance das personagens que cada um cria.
Para conectar com o começo, qual vai ser o Baile da Ilha Fiscal dessa era de influenciadores, qual será a gota d’água do espetáculo infinito, quando Lu Gimenez vai determinar que “enough is enough”? Se você achou que eu te daria uma resposta precisa, tenho más notícias. É uma resposta difícil. Percebi que para mim já tinha dado quando o ministro Silvio Almeida reagiu ao grotesco espetáculo de Eduardo Girão em uma audiência no Senado. Girão tentou entregar um feto de plástico ao ministro, que tinha anunciado a gravidez da esposa semanas antes. Espetáculo puro, proselitismo para plateia virtual sobre um problema de saúde pública que mata milhares de mulheres por ano, o aborto. Abre aspas para o Silvio Almeida:
Eu não quero receber isso por um motivo muito simples. Eu vou ser pai agora, e eu sei muito bem o que significa isso. Isso é pra mim uma performance que eu repudio profundamente. Com todo respeito, é uma exploração inaceitável de um problema muito sério que nós temos no país. Em nome da minha filha que vai nascer, eu me recuso a receber isso aí. Em nome da minha filha, não vou receber. Isso é um escárnio, não vou receber. Respeitando o seu cargo, eu não vou aceitar, eu sou um homem sério e acredito que o senhor também seja.
Só errou quando classificou Girão de “homem sério”.
A reação à resposta do ministro, porém, sugeriu um cansaço (quase) generalizado. Outra razão pela qual é difícil despejar a gota d’água final é que esse jogo de criador de conteúdo envolve dinheiro — pingado na maioria dos casos, mas dinheiro. Seremos espectadores deste espetáculo ruim por um bom tempo.
E onde entra a influência nisso tudo? Eu tenho lá minhas sérias dúvidas sobre o que é influência de verdade nesse cenário. Há métricas objetivas – tal influenciador fez publi, a venda cresceu tantos porcento, tem tantos milhões de seguidores, engajamento, curtidas, sei lá. Mas e a influência não monetária? Claro, a Kim Kardashian é imensamente influente — seu estilo é copiado por milhões de pessoas no mundo. Mas e todo resto tirando aquele topo da pirâmide? Que influência exercem? Escrevendo o episódio, me parece claro que uma das influências é meta: quanto mais influenciadores de sucesso aparecem, mais gente se convence que também consegue. A grande influência parece ser a capacidade de convencer os outros a também tentar ser influenciador. É uma pirâmide que promete enormes ganhos e entrega migalhas quando os primeiros que entraram estão nadando em dinheiro. É um baile, mas com três ou quatro bebendo champagne e milhões com um Tang sabor chorume.
- Que, em 98% dos casos, não é mansão porra nenhuma, só uma casa num condomínio. ↩
- Juro, não é piada. ↩
- Claramente íngreme é uma palavra que eu não sei escrever, já que é a terceira vez que eu erro. ↩
- E eu não estou. ↩
- Cauby era conhecido como um caso clássico de personagem que engoliu a pessoa. O perfil que o Fred Melo Paiva publicou sobre o Cauby no livro Bandido raça pura é imperdível para entender a questão. ↩
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